Por Hugo Martins
De entre as tendências literárias emergentes aquando da explosão de casos de COVID-19, como A Peste, de Albert Camus, ou O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood, destacaria Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.
Reminiscente dos tempos de confinamento, relata o quotidiano de uma população acometida por um fulminante «mal-branco», assim alcunhado pelo autor: doença contagiosa que rouba aos sãos da vista a boa visão, cegando-os, cobrindo-lhes os olhos de um «mar de leite». O que dava ares de maleita controlável alastrou como rastilho de pólvora, poupando uma só mulher.
Prestando-se a várias leituras, a cegueira narrada não é apenas física. Saramago metaforiza-a, passando de patologia ocular a luminosa alegoria.
Fala-nos o autor de Memorial do Convento de uma cegueira moral, de uma anomia e anemia éticas coletivas. Dias depois da ordem formal de quarentena, as promessas de socorro das autoridades romperam-se, as expectativas iniciais de amena e rápida erradicação do vírus e gestão democrática dos seus efeitos também. Sem comando nem gerência, só egos e umbigos, depressa se semearam o caos e terror, ora estalando o fino verniz de comunhão e paz, ora assomando o imo sanguinário e selvático latente em nós.
Introduz-nos a mão de Saramago a um universo de luzes e sombras, onde, a par do altruísmo e filantropia de alguns, se assiste ao embrutecimento e animalização da conduta e comportamento da generalidade dos cegos, indiferentes ao bem-estar e sofrimento alheios, autocentrados, reféns de apetites e impulsos biológicos animalescos. Escassa amostra da insensatez, perversidade e podridão humanas pintadas pelo literato ribatejano é dada pelo gatilho leve sobre enfermos inocentes e pelo sórdido episódio de violação de prostradas mulheres por meia dúzia de malvados a troco de mantimento.
Sob os binóculos do único par de olhos sãos, intercalando certo coloquialismo dialógico com tiradas filosófico-reflexivas de viés introspetivo, linguagem a seu tempo oralizante e literária, profundamente imagética, Ensaio sobre a cegueira dá a ver o negrume de criaturas ética e moralmente míopes, despidas de humanidade: «branc[a]s por fora, negr[a]s por dentro».
Serve a atual época de prova da intemporalidade da parábola do Nobel português, estando muitos de nós cegos da razão e bom-senso, presos na caverna de Platão, no manicómio saramaguiano. De braço dado com a empatia, ardem, periclitantes, o egoísmo e a vingança. Desde acontecimentos de ampla repercussão mediática, como a guerra na Ucrânia, protestos e focos de violência no Irão, a denúncias e reportes diários de atos e crimes hediondos, exemplos abundam da natureza intrinsecamente egoísta, impiedosa e ruim de uma espécie acorrentada a um barco que se afunda rumo à barbárie. Sob a alvura leitosa do dito «mal-branco» aninham-se as trevas penumbrosas do espírito humano.
Tratar-se-á a cegueira ficcionada de enfermidade insanável ou maleita corrigível? Tenderemos para a malevolência ou benignidade? Será a esperança numa melhor e mais civilizada sociedade ilusão inalcançável ou desiderato plausível? Por entre a nuvem negra que habita em nós, um lampejo de otimismo cintila tremeluzente. Talvez a bússola moral se recalibre, os instintos baixos e brutais serenem, a compaixão e compadecimento se instalem. Que a abnegação e racionalidade se sobreponham à egolatria e loucura! Que a boa índole de uns suplante a impiedade de outros! Parafraseando Saramago, que os vivos ressurjam de si mesmos!
Jovializar Março/2023 – Jornal 827